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COMO TUDO FUNCIONA - Matemágicos, não senhor!
(ou: Curso Rápido de Probabilidade Aplicada ao Futebol)



Nesses 12 anos em que o Chance de Gol está na estrada, divulgando probabilidades para os mais variados campeonatos, tomei contato direto ou indireto com um sem número de reclamações e queixas acerca de alguns números divulgados. Acredito que os responsáveis pelos sites coirmãos também tenham passado por essas experiências e que, assim como eu, tenham pacientemente respondido às interpelações mais sensatas e deixado passar outras manifestações, mais grosseiras, desrespeitosas ou que simplesmente não lhes eram diretamente dirigidas.

Novamente não posso falar pelos coirmãos mas posso afirmar que, de minha parte, essas manifestações ocasionalmente me provocam algum desconforto, mas nada que durasse mais do que os poucos minutos gastos com a leitura de certas alfinetadas dirigidas genericamente "aos matemáticos". Nesta segunda-feira (31/10/2011), porém, tive a impressão de essa situação ter chegado ao fundo do poço. Recebi de colegas estatísticos este texto cujo autor menospreza e ridiculariza os "matemáticos" e o faz de uma forma tão infeliz que, estarrecido que fiquei, eu não poderia deixar passar batido tamanho desrespeito!

Para começo de conversa, vamos dar nomes aos bois e eliminar uma das confusões mais freqüentes cometidas pela imprensa em geral: Matemática e Estatística são carreiras universitárias diferentes, que formam bacharéis com preparo e capacitação diferentes e que recebem registros profissionais diferentes. Portanto, "Estatístico" e "Matemático" não são sinônimos. Se você não chama o seu dentista de "médico" nem chama o colunista do seu jornal de "repórter", então por favor não chame um estatístico de "matemático" nem chame um matemático de "estatístico".

Existem, no momento, quatro sites voltados ao cálculo de probabilidades no futebol, mais o global Oswald de Souza, que não tem site mas também divulga as suas análises. Curiosamente, desses cinco "matemáticos", três são estatísticos e dois são engenheiros, ou seja, nenhum dos "matemáticos" assim tratados pela imprensa de fato são especificamente profissionais em Matemática.

Concluído esse preâmbulo, vamos ao que de fato interessa: as explicações de por que os "matemáticos" dizem o que dizem e por que isso de forma alguma constitui "erro", "chute" ou "mudança de idéia por conveniência".

Tudo se origina de um conceito básico tão importante quanto desconhecido do grande público: a probabilidade condicional. Todo mundo tem uma noção básica do conceito de probabilidade, aprendida em exemplos como a moeda que tem 50% de chances de dar cara e 50% de dar coroa ou o dado que tem 1/6 de chance de sair cada uma das faces. Só que o "mundo real" não é estático e o Campeonato Brasileiro é um processo de sete meses de duração, obviamente muito mais complexo do que um simples lançamento de uma moeda ou um dado. E é nesse ponto que entra em cena a probabilidade condicional.

Observemos um exemplo básico para entender como funciona "essa tal" de probabilidade condicional. Imagine que temos uma urna com duas bolas brancas e duas bolas pretas. Você deve sortear duas bolas da urna e, se forem duas brancas, você ganha um prêmio. A pergunta óbvia é: qual é a probabilidade de você ganhar o prêmio?

Pois bem, antes do início do sorteio, temos as seguintes possibilidades de bolas a serem sorteadas:

(branca1,branca2) *
(branca1,preta1)
(branca1,preta2)
(branca2,branca1) *
(branca2,preta1)
(branca2,preta2)
(preta1,branca1)
(preta1,branca2)
(preta1,preta2)
(preta2,branca1)
(preta2,branca2)
(preta2,preta1)

Dessas 12 possibilidades existentes nesse momento, duas (as identificadas com asterisco) correspondem ao resultado que vale o prêmio. Logo, a probabilidade de você ganhar o prêmio é evidentemente igual a 2/12 = 16,67 %

Imagine agora que você sorteou a primeira bola e saiu a "branca1".

As possibilidades agora foram reduzidas a três:

(branca1,branca2) *
(branca1,preta1)
(branca1,preta2)

E a probabilidade de você ganhar o prêmio mudou para 1/3 = 33,33 %

Agora imagine que a primeira bola sorteada fosse a "preta1". As possibilidades restantes seriam:

(preta1,branca1)
(preta1,branca2)
(preta1,preta2)

e a probabilidade de você ganhar o prêmio mudaria para 0/3 = zero!

Mas como pode uma probabilidade mudar ao longo do tempo? A resposta é simples: tratam-se de probabilidades condicionais, ou seja, probabilidades calculadas dadas as (ou à luz das) informações existentes até aquele momento! Na terminologia estatística, as três probabilidades que acabamos de calcular podem ser representadas da seguinte forma:
  • Probabilidade de ganhar o prêmio (DADO QUE nada ainda foi sorteado) = 16,67 %
  • Probabilidade de ganhar o prêmio (DADO QUE a primeira bola sorteada foi a branca1) = 33,33 %
  • Probabilidade de ganhar o prêmio (DADO QUE a primeira bola sorteada foi a preta1) = 0,00 %
Saindo das bolas e urnas e voltando ao futebol, imagine agora que o Seu Time está em ótima fase, que o Rival está em péssima fase e que ambos se enfrentarão na próxima rodada. No início do jogo, você está otimista e confiante na vitória do Seu Time. Porém, no final do primeiro tempo o placar mostra 3x0 para o Rival e o Seu Time teve um jogador importante expulso. Não é natural você "jogar a toalha" e achar que a derrota é irreversível? Só que o segundo tempo começa e, em menos de 5 minutos, o Seu Time diminui a diferença para 3x2. Você volta a alimentar esperanças de vitória mas ainda está ressabiado. Essa "flutuação de humor" é perfeitamente normal, não é? E o que é essa "flutuação de humor" se não a manifestação das "probabilidades condicionais" (ainda que não sejam expressas em números) geradas pelo seu "processador interno"? Essa historinha fictícia poderia perfeitamente ser representada por probabilidades condicionais da seguinte forma:
  • Probabilidade de o Seu Time ganhar o jogo (DADO o retrospecto recente e DADO que o jogo
    ainda não começou) = "grande"
  • Probabilidade de o Seu Time ganhar o jogo (DADO que já foram jogados 45 minutos e o Rival
    está ganhando por 3x0) = "muito pequena"
  • Probabilidade de o Seu Time ganhar o jogo (DADO que foram jogados mais 5 minutos e o Seu
    Time diminuiu a diferença para 3x2) = "razoável"
Sendo assim, se as probabilidades (condicionais) podem mudar ao longo do sorteio das bolinhas e ao longo dos 90 minutos de um jogo, então porque não poderiam mudar ao longo de um campeonato? O que os sites divulgam, portanto, são exatamente essas probabilidades condicionais: a probabilidade de o time X ser campeão, a probabilidade de o time Y ser rebaixado e a probabilidade de o time Z se classificar para a Taça Libertadores são valores calculados DADAS as informações contabilizadas até aquele momento (a tabela de classificação, os resultados até aquela rodada, a agenda des jogos futuros etc.)!
É uma conseqüência óbvia, portanto, que, à medida que o tempo vai passando e as rodadas vão acontecendo, o conjunto de informações contabilizadas vai naturalmente se modificando e, por conseguinte, as probabilidades de cada time ser campeão, ser rebaixado, se classificar etc. também sofram alterações!

Além da probabilidade condicional, existem outros conceitos tão simples quanto importantes mas freqüentemente ignorados ou tratados de maneira equivocada. O primeiro deles possivelmente esteja relacionado a expressões como "previsão matemática" ou "previsão estatística" que, embora sejam corriqueiras no meio acadêmico, são entendidas pela população em geral (em função da palavra "previsão") como sinônimas de "adivinhação", "vidência" ou "profecia". Essa associação incorreta de significados acaba fazendo com que muita gente por aí interprete uma probabilidade alta de rebaixamento do time X como se fosse uma afirmação definitiva e imutável de que "o time X VAI ser rebaixado"!

Dessa interpretação incorreta, nasce o segundo conceito importante: a partir do momento em que probabilidades não são afirmações, não há sentido algum considerar como "acerto" ou "erro" a ocorrência ou não do "rebaixamento do time X"!
Estatisticamente, só se pode falar em erro se um evento ao qual se atribuiu probabilidade 100% não acontecer ou se um evento ao qual se atribuiu probabilidade zero vier a acontecer!

Podemos, então, resumir o que foi dito até agora em três "mandamentos" do leitor de probabilidades calculadas para o futebol:

I - As probabilidades divulgadas no Chance de Gol e nos sites coirmãos não são e nunca pretenderam ser afirmações definitivas e imutáveis! Essas probabilidades são apenas projeções da situação de um momento específico e, como a cada rodada a situação de momento se altera, as respectivas projeções naturalmente também se alterarão.
II - Probabilidade não é vidência nem profecia! Probabilidades altas não são uma afirmação de que aquele evento VAI acontecer, assim como probabilidades baixas não significam impossibilidade de ocorrência desse evento.
III - Tudo o que tem probabilidade 99% de acontecer, tem probabilidade 1% de não acontecer. Logo, não se pode rotular o acontecimento ou não de um evento como "acerto" ou "erro".

Finalizando, vamos analisar um exemplo real onde todos os "três mandamentos" se aplicam: recentemente, Flamengo e Universidad de Chile se enfrentaram nas oitavas de finais da Copa Sul-Americana.

Pergunta número 1: Seria implausível que, antes da realização do primeiro jogo, um estatístico calculasse probabilidades de classificação às quartas de finais de 60% para o Flamengo e 40% para a Universidad de Chile?
Resposta (mandamento I): Não! Esse estatístico estaria simplesmente dizendo que a Probabilidade condicional de classificação do Flamengo, DADAS as informações existentes até então, era igual a 60% e, por conseguinte, que a probabilidade condicional etc. da Universidad de Chile era igual a 40%.

Pergunta número 2: Seria inaceitável que, após o jogo de ida, quando o Flamengo perdeu por 4x0, esse estatístico passasse a apontar probabilidades de classificação às quartas de finais de 2% para o Flamengo e 98% para a Universidad de Chile?
Resposta (mandamento I): Não! Novamente, esse estatístico estaria simplesmente informando uma probabilidade condicional, dizendo agora que a probabilidade de classificação do Flamengo, DADO que o jogo de ida foi 4x0 para a Universidad, era igual a 2% e, por conseguinte, que a probabilidade da Universidad de Chile era igual a 98%.

Pergunta número 3: E se no jogo de volta o Flamengo vencesse por 5x0? O estatístico teria "errado" e deveria ser execrado e ridicularizado internet afora?
Resposta: Não! Em primeiro lugar (mandamento II), em nenhum momento o estatístico afirmou que "a Universidad de Chile VAI se classificar". E, em segundo lugar (mandamento III), a possibilidade de classificação do Flamengo estava contemplada e medida em 2%. Logo, não há como falar em "erro"!

Resta agora esperar que os próximos torcedores, jornalistas e blogueiros leiam este artigo antes de fazer suas postagens e procurem humildemente apreender os conceitos por trás das probabilidades anunciadas pelos diversos matemáticos. A discordância e a crítica são direito de todos, mas não há como discordar ou criticar algo sem um mínimo conhecimento de causa!

E que as almas de Pascal, Bernoulli, Poisson, Descartes, Gödel, Russell e tantos outros iluminem as mentes que desejarem se aventurar no universo da matemática, da lógica e das probabilidades.

Nota: Eu e alguns colegas estatísticos tentamos diversas vezes postar, na seção de comentários à coluna supracitada, argumentos como os acima detalhados e/ou links para este artigo. Lamentavelmente, porém, o autor daquele texto ignorou por completo todas as manifestações, somando pelo menos sete posts censurados, unicamente por cometerem o pecado de não concordarem ou não endossarem o seu ponto de vista!

Venho aqui, então, expressar publicamente meus totais e veementes REPÚDIO e INDIGNAÇÃO pela lamentável atitude daquele cidadão em não apenas achincalhar gratuitamente a classe matemática mas também censurar seguida e sumariamente manifestações contrárias à sua verdade absoluta!

Fosse um "mero cidadão" que tomasse essa atitude, isso já seria inaceitável. Mas, tratando-se de um membro de uma classe profissional (a classe jornalística) que sempre empunhou a bandeira das liberdades de pensamento e de expressão e sempre combateu qualquer tipo de ditadura e opressão, é simplesmente LAMENTÁVEL que tudo isso esteja acontecendo!

Assim, em meu nome e em nome da classe estatística, fico à espera de uma resposta ou retratação pública por parte do referido comentarista. Ou do silêncio que atestará, publicamente, a sua real capacidade de argumentação e o seu real entendimento do assunto!


Leia também:
- Entenda os cálculos do Chance de Gol
- Curso Rápido de Probabilidade - Parte II (Probabilidades Baseadas em Parâmetros)
- Estatísticas e medidas: quanto o Chance de Gol "erra" e "acerta"
- Cursos e palestras sobre Probabilidade, Estatística e o Chance de Gol






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